O ato de escrever parece uma compulsão em que liberamos nossos demônios e, geralmente, satisfazemos nossas veleidades. Muitas vezes, nossos escritos permanecem inéditos e secretos, porque seu conteúdo se nos afigura muito íntimo ou desimportante para ser dividido com outrem. Mas escrever um livro, exteriorizar nosso sentir e nosso pensar, assume uma dimensão que transcende a mera satisfação de necessidades interiores do autor. Na substância ou na forma, deve conter matéria que contribua para enriquecer a sensibilidade e o intelecto de outros indivíduos.
Um livro com escopo científico, não trata somente de compartilhar o sonho e a beleza, o que é, sem objeções, extraordinariamente importante. Sua responsabilidade consiste em proporcionar acesso a um determinado campo do conhecimento, inovando, renovando, ou simplesmente, divulgando. Por outro lado, certos assuntos mantêm conosco uma espécie de atração mútua que precisa ser materializada graficamente, para que se clarifique a importância dessa influência. A motivação que me levou a escrever este livro se assenta na obrigação que senti de dissertar sobre um tema que mantém comigo uma relação persecutória recorrente desde meus tempos de estudante - o crescimento craniofacial. Evidentemente, não me mobilizou a intenção egoística de resolver um problema pessoal. Houve sempre o objetivo maior de, ao repassar esta mensagem, dar um modesto contributo à equação das incógnitas que perturbam todos os interessados pelo mesmo tema.
Que não devem ser poucos! Desde que me iniciei na Ortopedia Dentofacial, observei intérminos debates sobre questões que sempre se me afiguram óbvias, embora não dispusesse, inicialmente, de recursos epistemológicos para elucidá-las. Havia uma radicalização tão intensa, que era difícil, muito difícil, estabelecer uma aproximação de especialistas de campos opostos - o diálogo era inviável. A questão fundamental, em torno da qual todas as outras giravam, concernia à superioridade de sistemas de tratamento: aparelhos fixos contra aparelhos amovíveis; Ortodontia contra Ortopedia Funcional dos Maxilares. No princípio, ficava perplexo diante de tão visceral antagonismo, porque me era difícil de entender e explicar tanta radicalização.
O amadurecimento profissional e intelectual, com sua carga do cronológico, e, sobretudo, a obra de Kuhn sobre "A Estrutura das Revoluções Científicas" me ensejaram a constatação de que a raiz das controvérsias, e até desavenças, era mais profunda e abrangente do que uma simples e ridícula rivalidade profissional. Os especialistas de cada área tinham diferentes visões do mundo, visto que praticavam a mesma especialidade, usavam o mesmo jargão, mas os modelos interpretativos - os paradigmas -, eram completamente diferentes. Olhavam os mesmos fenômenos, mas viam coisas distintas. Usavam as mesmas palavras, mas o significado nem sempre era o mesmo. Evidentemente, ninguém estava absolutamente certo, nem totalmente errado. Simplesmente, ocupavam mirantes diferentes, em que vislumbravam panoramas reducionistas e odontocêntricos. Procurei mostrar, em obra anterior, a unidade conceitual de tratamento. As posições de antagonismo representam somente polos de complementaridade, cuja percepção depende da imersão num paradigma sistêmico no qual se privilegia a complexidade.
Outro dos assuntos muito debatidos e altamente controvertidos, o crescimento craniofacial, da maior importância para o cirurgião-dentista, nem sempre mereceu a necessária ênfase no ensino odontológico. Por exemplo: discutia-se e ainda se discute, às vezes com muita veemência e pouco argumento, a cientificidade da estimulação terapêutica do crescimento mandibular. De um lado, os ortodontistas ortodoxos alegavam a inutilidade desse procedimento, porque o crescimento ósseo estaria determinado no genoma das células ósseas. De outro lado, os funcionalistas apregoavam a importância da função no desenvolvimento do organismo. Os funcionalistas tiveram poderoso apoio para sua argumentação com o advento da Hipótese da Matriz Funcional desenvolvida por Moss, que provocou acirrada oposição, porque era extremamente inovadora.
Meus primeiros contatos com a obra desse autor, na década de 60, foram muito gratificantes. Percebi, imediatamente, que se coadunava com os fundamentos da escola funcionalista, tendo o mérito de estabelecer uma ponte entre a Ortopedia Funcional dos Maxilares e a escola ortodôntica americana. Esse vaticínio começou a materializar-se na década de 70, quando se abriram espaços para a publicação dos trabalhos de Frankël, Pétrovic e Harvold, entre muitos outros. Outra percepção, sedimentada no decorrer dos anos, foi exteriorizada também por Enlow, outro insigne pesquisador - a Hipótese da Matriz Funcional é um marco na história dos estudos sobre o crescimento craniofacial, constituindo uma fecunda rotura paradigmática.
Atualmente, existe razoável entendimento da importância da integração das técnicas funcionalistas e ortodônticas, embora a questão técnica predomine sobre os aspectos científicos e conceituais. Entretanto, a resistência à Hipótese da Matriz Funcional ainda persiste, apesar dos esforços do Dr. Moss e de seus colaboradores para demonstração da coerência de seus assertos. Mais uma vez, o diagnóstico da situação nos mostrou que as controvérsias derivam de uma diferença paradigmática. Para poder captar a essência do pensamento funcionalista, é preciso apreender os fundamentos da cosmovisão sistêmica. Por isso, se deve discordar quando alguns dizem que o objetivo da ciência é simplificar para poder explicar. Acontece que, do macro ao microcosmo, somente encontramos a complexidade. A simplificação é um artifício mental que pode ser muito útil. Todavia, quando ferramenta exclusiva do pensar, obscurece a riqueza das interconexões inerentes à vida.
Foi justamente esse diagnóstico que me impulsionou a escrever este livro há cinco anos atrás, tendo como norte evidenciar que somente o paradigma sistêmico fornece os instrumentos para explicar a Hipótese da Matriz Funcional de maneira mais clara, tornando-a mais acessível. O paradigma reducionista impede a percepção de sua importância.
Ao assumir essa disposição, não descartei a possibilidade de questionarem minha capacidade para dissertar sobre assunto tão complexo. Decerto, um livro sobre crescimento craniofacial seria adequado para cientistas altamente preparados, visto que exige profundos conhecimentos interdisciplinares e a utilização de sofisticados e poderosos métodos matemáticos. Reconheço que sobram razões nesse argumento - sou apenas um clínico impregnado pelo vício de estudar e, cônscio de suas limitações, repassar o que conseguiu aprender. Acontece, no entanto, que:
Mas a falta de investidura acadêmica pode até ter um lado positivo - a liberdade para um discurso heterodoxo, em que o manejo do conhecimento adquirido informalmente, guiado principalmente pela curiosidade intelectual, pode gestar algo insólito e inesperado. Ademais, um texto expressando um modo diferente de pensar, com tons de heresia, pode ser o estímulo que algum intelectual esteja precisando para a produção de trabalhos mais solidamente estruturados e, portanto, mais representativos. Acredito que os mais de trinta anos convivendo com o tema em tela e apresentando-o em cursos e conferências me forneçam alguma credencial para transformar minhas excogitações em material com alguma utilidade para quem partilhe os mesmos interesses. É verdade que o cerne da obra consiste na manipulação de material alheio. Isso me torna uma espécie de relator em débito com esses autores a quem transfiro os méritos - se houver algum -, e peço desculpas pela ousadia de apropriação. Esse débito é extensivo àqueles a quem possa ter manifestado discordância. Respeitar as idéias do outro, embora divergindo, é uma exigência ética essencial de quem se propõe a externar suas opiniões, suas verdades. Sinceramente, não há nada mais instigante para desvendar o saber ou excitar o aprender do que uma opinião diferente na nossa. Em muitos contextos, como discípulo aplicado, exteriorizo minhas dúvidas e levanto questões. Foi a forma que encontrei para retribuir-lhes o usufruto das informações - sugerir hipóteses a serem testadas.
O desenvolvimento da obra visou caracterizar a importância da Hipótese da Matriz Funcional como modelo interpretativo fundamentado em bases sistêmicas. Ostentando minhas aptidões e deficiências, expressa também as dúvidas e questionamentos auscultados em alguns cursos e conferências. Nos três primeiros capítulos, existe a preocupação de inserir os conceitos básicos que esteiam o desdobramento dos outros segmentos. Os capíltulos seguintes abrangem alguns dos aspectos mais interessantes e polêmicos, porque se referem ao período de intervenção do especialista em Ortopedia Dentofacial. Eles consistem numa sinopse sobre o crescimento craniofacial, incluindo as diversas teorias, os mecanismos de controle mais cogitados e o processo geral pertinente. O capítulo sobre biomecânica da morfogênese craniofacial, sem perder a conotação sistêmica, registra um estudo analítico das forças que influenciam o fenômeno auxológico. Trata-se de uma tentativa de clarificar as "forças do crescimento", um chavão com uma certa carga mitológica - muito falado, muito mencionado, muito respeitado, mas também muito, muito desconhecido. O último capítulo descreve o desenvolvimento de sistema estomatognático. Nele, há certa ênfase ao neonato, proporcionando merecido espaço para o aleitamento materno. Isso ocorreu, porque a literatura odontológica é muito econômica quanto a sua importância, e, além disso, certas disgnatias se relacionam com as etapas mais precoces do desenvolvimento. Para ressaltar a importância clínica desse capítulo, se descrevem as características que exprimem as tendências desenvolvimentais favoráveis e desfavoráveis, assim como os momentos críticos para o diagnóstico precoce das disgnatias e para o início da ação terapêutica.
Ao iniciar esta jornada, tinha a profunda convicção de que a via sistêmica seria a maneira natural de clarificar a Hipótese da Matriz Funcional. Pensava havê-la terminado, quando recebi os artigos do Dr.Moss, em que desenvolve uma argumentação em bases sistêmicas, para explicar como as informações geradas nas matrizes periosteais se transformam em atividade celular depositiva ou reabsortiva. Baseado nos avanços da Biologia Molecular e da Bioengenharia, ele preconiza uma explicação firmada na mecanotransdução. Como não poderia deixar de ser, minha convicção se transformou em certeza, visto que tive de fazer, apenas, ligeiros acréscimos para atualizar as referências ao ilustre autor. É com esse aval indireto que libero o texto para publicação, alimentando também a expectativa de resolver assim, de modo satisfatório, minha relação magnética com o tema.
Este texto é a apresentação do livro: Crescimento Craniofacial - Uma Interpretação Sistêmica, que tem como autor o Dr. Antonio de Padua Ferreira Bueno. Edição do autor - Rio de Janeiro - 1997.
Este livro, segundo o Professor Melvin Moss, a maior autoridade mundial em crescimento craniofacial, é o "mais avançado, mais claro e mais completo escrito sobre a Hipótese da Matriz Funcional em qualquer língua e por qualquer autor, inclusive ele".